Corpo empresa na Indústria do espetáculo
O fenômeno dos Reality Shows invadiu a cultura contemporânea desde a virada do milênio. É um fenômeno de âmbito mundial que no Brasil possui como característica peculiar o foco nas formas corporais, na exibição da semi nudez, nas cenas de piscina, banhos, biquinis e peitos. No show de realidade, os corpos masculinos também são alvo de exibição e orgulho, virando a medida do sucesso ou do fracasso, dando um valor de mercado para aquela “celebridade”. A chamada celebridade é justamente uma figura pública sustentada numa imagem.
Um casal formado num Reality Show afirmou poderem aparecer juntos publicamente mas a foto do beijo estaria valendo no mercado cem mil reais.
O Reality Show será descrito aqui como um grande jogo do EU. Segundo Maria Rita Kehl [1]
“o EU como principal objeto de investimento do amor narcísico e a imagem oferecida aos outros”.
Num Reality Show com formato de confinamento, os participantes ficam isolados hermeticamente do mundo: não lêem jornal, não assistem TV, não tem acesso à Internet, não possuem relógio, não recebem notícias dos familiares ou amigos. O intuito disso, ao meu ver, é fazer com que o participante se separe do seu universo de relações, na tentativa de distancia-lo de sua história, para que possa focar-se exclusivamente na auto sobrevivência, na competição e nas relações imaginárias. Guy Debord [2] afirma: “ O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social mediada por imagens ”.
Buscando mostrar uma imagem ideal de si, o EU se debate com o espelho e com os outros EUS colocados nas mesmas condições de isolamento.
Os locais onde se passam os Realities são settings de gravação maquiados de lar. Há muitos anos atrás, tentando estabelecer uma separação entre o que era imagem pública e subjetividade para um participante confinado num programa de formação de banda musical, usei o exemplo da lareira da casa forrada com um papel de notas musicais do cenário. Não aquecia nosso encontro numa noite gélida. Feita de papelão para cenário, não podia ser acesa, gerar calor… Aquele rapaz estava rompendo seu casamento para ficar com a mocinha que vencera o mesmo programa em sua versão feminina. E o que sabiam um do outro, a não ser que, a partir de então, representariam o mesmo, em duas diferentes versões?
Em geral, todos esses cenários são rodeados por espelhos. Atrás de cada espelho, uma câmera. Na frente do espelho, uma cara posando especialmente para o olho imaginado que o assiste. Há sempre o olhar do outro atrás do espelho. “Aqui, nunca se pode ficar sozinha” foi como definiu uma participante da Fazenda 3.
Ao passar o tempo sem ter que produzir nada a não ser a cena para as câmeras, o foco fecha-se exclusivamente no EU, e o corpo é então aquilo que se tem. Que se usa. O corpo é aquilo que desenha-se para mostrar quem se é para o outro ver.
Há no mínimo três variáveis sempre em jogo em qualquer situação ali: o que é do programa, o que o sujeito está passando e o que o sujeito quer parecer estar passando.
O participante está num constante cálculo sobre qual será o julgamento que virá do outro que o assiste de casa. Ser eliminado do programa, é o veredito da desaprovação e a queda de um Eu Ideal para um mundo que, segundo uma participante, “eu deveria gostar, pois aqui sou livre” mas acaba dizendo “o meu mundo é aquele lá”. E após um silêncio conclui “A única coisa que eu quero realmente saber é porque fui eliminada”.
De que tipo de miséria estará fugindo aquele que entra no mundo encantado do Reality Show? Cito Guy Debord [2] em A Sociedade do Espetáculo: “O homem cuja vida se banaliza precisa se fazer representar espetacularmente”. E ainda (pág 14 item 6): “Considerado em sua totalidade, o espetáculo é ao mesmo tempo resultado e o projeto do modo de produção existente. Não é um suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o âmago do irrealismo da sociedade real (….) o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade” .
Ao referir-se ao próprio corpo como “a minha empresa”, os participantes seguem dizendo “ a saúde da minha empresa”, “ o sucesso da minha empresa”, “preciso manter bem a minha empresa” , “ tomar minhas vitaminas” e se indagado a respeito disso a resposta é “ preciso manter bem a minha imagem pois é dela que vivo, de onde tiro meu sustento e sobrevivência”. Kehl afirma em o Tempo e o Cão [3], pág 99, que “O sujeito não vende seu tempo de trabalho, vende a si mesmo como objeto de gozo para o outro”.
Da parte do público, fascinado pela beleza daquelas imagens esculpidas na TV, em [2], pág 24, “quanto mais ele contempla, menos vive, quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo”.
Aquele que diz “Meu corpo é Minha Empresa” profere isto no contexto das chamadas televisivas que clamam “essa é sua única chance, venha realizar seu maior sonho; a maior, melhor e única oportunidade de ganhar um milhão, de ganhar dois milhões, de ser famoso, de ter todas as mulheres, carrões e fama” na pressuposição de que esta é uma oferta irrecusável pois acena para o gozo ilimitado dos prazeres, das posses e do poder. Também aponta para um EU finalmente completado em todas as suas faltas. Não será que é disso que fala a participante desolada por ter sido eliminada daquele que era “seu mundo” desentendida por não estar feliz por “estar livre”, por estar de novo “em falta”? Caída do universo de gozo para o mundo faltante do desejo?
A oferta feita pelo Reality para o participante, num contexto de indústria que move aproximadamente 100 milhões de reais só de merchandising e venda de cotas de patrocínio por temporada de programa, é de que sempre haja também para ele uma somatória de ganhos. Só ganhos.
No discurso oficial do convite ao show não existe jamais a enunciação das perdas, nenhuma referência ao processo e sofrimento na eliminação, nem tampouco da exposição da dor que se tornará o principal foco da dinâmica final dos programas. Em O Tempo e o Cão [3] Kehl discorre sobre a criação de uma ‘imagem pessoal’ para vender a si mesmo no competitivo mercado de trabalho. Baseando-se em Walter Benjamim, nos fala, sobre o CORTEJO ESPETACULAR DOS VENCEDORES, que fascina os derrotados e impõe o ritmo do rápido esquecimento dos processos e da historia. Cito Kehl, [3] na pág 89 …“desigualdades e exploração, que nos primórdios do capitalismo produziram conflitos entre classes, ficam obscurecidos em função da atração exercida pelo espetáculo do triunfo dos vencedores”. É relevante que justamente num livro sobre as depressões, se encontre tanto subsídio para uma discussão sobre o Corpo-Empresa.
Atualmente, acompanho o sofrimento dos eliminados ao assistirem o programa um dia após sua saída. A constatação fria de que não deixa praticamente nenhuma marca de sua falta ou ausência. A roda gira impessoalmente, motivo aliás, cabe aqui ressaltar, da absoluta falta de necessidade de manipulação dos votos de eliminação. A estrutura do programa e seu sucesso independe das pessoas que estão ali jogando seus papéis.
O conceito de Corpo-Empresa dialoga com o conceito de Indústria do Espetáculo como a experiência singular dentro de um fenômeno cultural de massa. Uma Empresa, segundo o dicionário Novo Aurelio é uma “unidade de produção e venda” enquanto a Indústria é “a atividade de produção de mercadorias, especialmente de forma mecanizada e em grande escala..”
A indústria que segundo Maria Rita Khel no seu livro O Tempo e o Cão [3], pág 92, “ é justamente essa combinação entre uma grande variedade de imagens que se oferecem à identificação e a repetição praticamente idêntica dos enunciados que a veiculam” ou seja, o que importa ali, como bem demonstra o corpo/empresa , é o dinheiro, ou como diz Maria Rita [3]
“ o espetáculo é dinheiro que se olha”.
Em Debord [2], “a sociedade do espetáculo é a relação social entre indivíduos mediada por imagens”. O sujeito que afirma ter um corpo, e esse corpo é para ele sua empresa, esta completamente identificado à sua forma de mercadoria e vive seu corpo como uma imagem para ser vendida no mercado. Não está numa competição entre outros jogadores, está numa concorrência. Apesar de todos quererem assistir a cenas erotizadas entre estes corpos, o que se exibe é uma batalha pelo prêmio. Como disse certa feita uma participante ao deparar-se com uma camisinha: quem pensaria em fazer sexo num clima desses? De qualquer modo, vale salientar que os corpos siliconados são mostrados em qualquer lugar, em qualquer situação, tendendo a uma falta de significação erótica. No sex appeal. Como se quisesse dizer: Mais alguma coisa que comprei para mim! O que torna os programas brasileiros singularmente erotizados são os corpos que diferentemente da Europa e Estados Unidos jamais se despem por completo, sempre mantendo um mini biquini, um fio dental, para seduzir pelo que não revela ali.
Muitos acusam os Realities de escolher pessoas com características excessivamente rasas, com muito corpo e pouca elaboração simbólica. O tema não será abordado aqui dessa forma, até porque não acredito que existam diferenças tão marcantes entre as pessoas em si mesmas e sim manifestações, reações e comportamentos que tornam-se relevantes frente a determinadas situações e estruturas. Comportamentos que respondem a determinadas situações. O que observo é que as pessoas escolhidas, principalmente se não possuem um talento artístico onde se apoiar, que são puras celebridades, escolhem mostrar-se como corpo/empresa, pois acreditam que é exatamente isto que se espera delas. A expectativa de mostrar um EU perfeitamente controlável pelo ideal que se imagina ser o esperado pelo público é comum a todos. O sujeito olhando-se no espelho também faz lugar de público para si mesmo.
Que o Reality Show, no contexto brasileiro, possui este atravessamento cultural de ser uma exibição de corpos talhados, esculpidos e trabalhado como uma máquina de se fazer ver e assistir foi traduzido por um participante de um programa pela frase “ preciso me alimentar bem, malhar todo dia, dormir bem, tomar minhas vitaminas afinal, meu corpo é minha empresa ! ” uma idéia de sujeito atravessada por um corpo cultuado de forma autônoma, onde o objeto-corpo toma a consistência final do EU. O que se verifica é que esse corpo/empresa, com a anuência de seus médicos, admite também a inclusão de medicamentos que servem para adestrar também os afetos. O objetivo é firmar a “musculatura” da empresa, conter quimicamente a violência, incentivar com anabolizantes a performance na academia, sem contemplar que para além do Corpo-Empresa há um sujeito. Sujeito afeito a efeitos colaterais e afetos descontrolados!
Relato aqui a experiência em um Reality cuja missão era selecionar cinco garotas para formar uma banda de popstars. Selecionadas de um universo de vinte cinco mil inscrições, as finalistas deveriam estar (parecer) exultantes ao final do processo. Quatro delas, estavam. Transformadas em popstars, estavam entregues plenamente a nova vida. Eram pequenas corpo-empresa de fazer shows, discos, produtos licenciados. Isto passava por emagrecimento dirigido, exigido, compulsório; branqueamento dos dentes; mudança de todo o guarda roupa, mudança de penteado e eventualmente, palavras impostas pela produção para serem respondidas nos programas de auditório. Nesses programas, as músicas, também feitas sob encomenda por produtores já experimentados no ramo do show bizz, seriam executadas por play back.
Para uma das cinco finalistas, o resultado após o extenuante processo de exibição dos fracassos de todas as demais aspirantes, e do seu sucesso, lhe aparecia como roubo de toda sua arte e devagarinho, de toda sua vida. Uma depressão lenta e gradual insinuou-se ao longo do primeiro ano de absoluto sucesso da banda. Todo o Brasil cantava a música daquela banda pop. Lia sua depressão como forma de resistência! Havia lutado toda sua vida por ser artista e agora era uma peça na engrenagem de várias empresas que viviam às suas custas. Havia a produtora da banda, o canal de televisão, a dona do formato do programa e a gravadora, todas abocanhando os lucros da pequena empresa que era a garota transformada em popstar. Essa não suportou, preferiu voltar a ser gordinha e tocar MPB!
O resultado da construção de uma identidade forjada pela aparência abre espaço para que emerja o desconhecido de si, muitas vezes de um modo abrupto e desconcertante. Se o sujeito não é também sua própria subjetividade, se é apenas objeto de uso e consumo de si e do mercado, seus afetos e expressões facilmente o surpreendem como irrupção. A expressão de algo que se veicula através do corpo, não sendo apenas corpo, já foi visto em alguns Realities como ato de violência, assombro e choque. O participante se vê derrubado ao chão, seus afetos assaltando sua existência. A surpresa de sua reação é imensa para si e seus familiares.
Violência, em alguns casos. Depressão, em mais casos ainda. Leves distúrbios alimentares com uma frequência assombrosa. Medicamentos para dormir, são utilizados indiscriminadamente. Síndrome do Pânico, assim chamada as vivências de angústia intensas, medicadas e temidas. Sempre um Rivotril no bolso, para qualquer assalto vindo do interior.
A promessa para o público de que é ele que decide o andamento do programa, a interatividade desse formato, também provoca uma segunda onda de corpos/empresa, dessa vez por parte do telespectador identificado com aquela estética que acena para a garantia de um gozo perene.
Alguns formatos de Realitys Shows oferecem como prêmio ganhar uma cirurgia plástica, um cabelo novo, uma transformação visual que garantirá uma mudança total na vida de quem a ela se submeter. Novo corpo, novo EU. Novo EU, novos lucros.
FIM
Referências Bibliográficas
[1] Bucci, Eugênio; Khel, M. R. Videologias: ensaios sobre televisão, 1ª ed.- São Paulo: Boitempo, 2004
[2] Debord, Guy A sociedade do espetáculo, 1ª ed. – Rio de Janeiro: Contraponto, 1997
[3] Kehl, M. R. O Tempo e o Cão: a atualidade das depressões, 1ª ed.- São Paulo: Boitempo, 2009