Casa dos Artistas – O começo
Era uma pacata manhã de sol, com crianças brincando no quintal. Eu ainda amamentava meu segundo filho quando recebi um estranho telefonema. Você quer participar de um programa de televisão como psicóloga? Era uma companheira de meditações no centro de Dharma da Paz, a produtora de televisão Fernanda Machado. Buscavam uma psicóloga que tivesse ligação com o meio artístico. Meu currículo de bailarina de circo e psicóloga formada pela PUC de SP poderiam dialogar com o pedido, estávamos em 2001. Conversamos sem poder falar de nomes, cachê, nem mesmo revelar a emissora, já no clima de segredo e curiosidade em que viveria nos próximos meses.
Marcamos um primeiro encontro num local secreto e senti como se estivesse entrando numa cena de um filme de ação e mistério. O esquema de sigilo para o lançamento bombástico do programa aconteceria em apenas uma semana. O segredo foi mantido impecavelmente, ninguém da produção deixou a informação vazar. O resultado imediato dessa estratégia de lançamento foi medido pela subversão do monopólio do Ibope, até então, sempre tão previsível no Brasil.
A indicação para chegar onde seria a primeira Casa dos Artistas era que deixasse meu carro num estacionamento ermo que “alguém” viria me buscar.
Silenciosamente chegou uma van. Quando entrei, fecharam-se as janelinhas com cortinas pretas, tudo tomado muito a sério o que tornava levemente cômica aquela situação.
– Só abra quando eu mandar – foi o que escutei.
Então, já dentro da garagem da Casa dos Artistas, pude voltar meus olhos para o que se preparava ali. Um efervescente movimento adaptava uma casa do Morumbi em um complexo estúdio de televisão onde cada ambiente seria rodeado por corredores escuros. Cada ambiente seria monitorado por câmeras escondidas atrás de espelhos.
A idéia, jamais concebida antes, era a captação das cenas prosaicas, do cotidiano, para transportar uma realidade viva, dita normal, corriqueira e doméstica em trama de TV. Um Reality Show. Um show de realidade. Algo que pipocava no mundo e que ainda não existia no Brasil, um formato de programa de televisão em que o público interage com a trama, decidindo quem segue na cena e quem sai.
Entrando pela Casa, vi uma decoração no quarto das mulheres feita por quadros com rosas vermelhas. Lembro que comentei com a ingenuidade que prontamente veria extinguir-se: Isto aqui está sendo montado para o sexo! Entre os quartos, uma banheira de hidromassagem, um box para banhos coletivos que se tornariam para sempre um clássico nacional de desfile de corpos bronzeados e espelhos.
As paredes eram permeáveis. Eu perambulava pela Casa em obras imaginando o que poderia acontecer ali. Pressentia os romances sob os edredons sem jamais imaginar que os participantes, depois de tudo terminado, já em suas casas, me contariam transar sob os edredons imaginando a luzinha vermelha do monitor a lhes observar. O que nos romances 1984 de George Orwell e Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley aparecera como imposição de um estado totalitário (acesso e observação de todos os comportamentos humanos) seria agora oferecido de bandeja, a intimidade em troca da promessa de dinheiro e fama.
A Casa dos Artistas estava sendo preparada para ser vista pelo BRASIL – como a massa de público anônima viria a ser chamada pelos participantes, uma entidade imaginariamente coesa que assiste durante vinte quatro horas por dia o programa, sentada no sofá, em frente a televisão!
Quarto para homens de um lado, quarto para mulheres de outro, luzes fortes, sempre acesas. E espelhos, por todos os lados, espelhos. Academia de ginástica, parede de ladrilhos da piscina, hidromassagem, cozinha, camas, infravermelho para captação no escuro. Para cada canto interior, correspondia um espelho, uma câmera, um ponto de visão. A entrada de um olhar de fora, aparentemente não explicitado e que parecesse não intrusivo. Câmeras escondidas, com o objetivo mesmo de se fazerem esquecer o mais rapidamente possível. O olhar de um grande Outro sempre presente, algo que torna literal a fantasia recorrente de estar sempre sendo observado, visto. A logomarca do buraco da fechadura remetia a esse olhar onipresente, sem barreiras.
Durante a construção da Casa dos Artistas conheci o diretor geral do programa que coordenava uma equipe de outros cinco diretores, todos jovens, informais e modernos, que se reuniam numa sala com uma única mesa oval. Estética MTV, ouviríamos comentar depois, referindo-se a uma forma de trabalhar que desde logo iria revelar diferenças de linguagem com a emissora que lançava o projeto.
Negociei minha contratação com a diretora de produção assinando documento de total sigilo profissional. De fato em todos esses anos em que atuei como psicóloga de diferentes formatos de reality shows, me mantive a margem da mídia sem pretender fazer revelações. A busca por um lugar ético ainda permeia toda atividade de quem está na interface da experiência real do sujeito e a realidade vivida no programa de televisão.
A casa do Morumbi, adaptada para ser a primeira Casa dos Artistas não era ainda um espaço cênico construído num complexo estúdio de televisão, como viria a ser a Casa dos Artistas 2, logo em seguida. Era uma adaptação que carregava em si o frescor da novidade, a delícia da criação, os pequenos sustos de resultados inesperados, atingindo um sucesso com impacto nas vidas e carreiras profissionais de cada um de nós.
O entrosamento dos diretores do programa desde o começo revelou-se como grande força de realização. O contato entre a equipe de produção e os participantes é muito delicado, dado que o participante fica a mercê da produção, pois perde o controle da própria vida no período do confinamento. Muitos sentem-se como um bebê aos cuidados da mãe – sem nenhuma autonomia no que se refere as suas necessidades de sobrevivência. Outros reagem com ódio, não há como prever as diversas reações que irão surgir no confinamento.
A equipe que sustenta o programa é no mínimo vinte vezes maior fora da Casa, fora da cena, do que aqueles que aparecem no show. Ainda hoje, passado tanto tempo do calor dos acontecimentos inicias que relato, é impossível não se envolver de corpo e alma com um trabalho que pede compromisso individual com o projeto, que necessita de absoluto sigilo para funcionar e opera pela separação do mundo externo para suceder. A equipe que trabalha no reality, formada por mais de duzentas pessoas, faz um reality paralelo a qual chamamos jocosamente The Office, com seus dramas, romances e angústias. A equipe em parte também abandona seu mundo particular para debruçar-se sobre aquele projeto que transborda o compromisso profissional, invade também nossas vidas .
O círculo interno do reality é a Casa, onde os participantes se relacionavam exclusivamente com o apresentador nos programas eliminatórios. Isto que aparece na tela está rodeado por uma enorme equipe de produção anônima. A família dos participantes vê-se convocada a participar do show. Parte-se do pressuposto que aquele que está no confinamento carrega o peso de representar sua origem, cidade e sobrenome.
Muitas vezes o participante celebrizado pela exibição carrega o ônus de defender sua própria cidade natal que se vê representada ali por aquela pessoa que age em nome de todos, recebida em carro de bombeiro quando retorna, assistida em telão na praça pública para levantar torcida, oportunidade de fama também para o prefeito e amigos que sonham existir pela televisão. Em volta daquela celebridade que cresce em popularidade ao longo da exibição do programa, constroem-se às vezes empresas com dezenas de funcionários. Lembro do clássico caso dos assessores, que no final da Casa dos Artistas eram a marca meio ridícula do sucesso do participante, chegando a somar num caso inacreditável relatado na mídia, vinte assessores das mais diferentes causas e funções para uma única celebridade!
Assessores, empresários, auxiliares, secretários, são imprescindíveis e extremamente úteis quando se acredita que cuidar dos seus próprios interesses é algo que te diminui.
Em 2001, antes da estréia, cada pessoa da equipe contava-me um aspecto do projeto, uma faceta da sua estória, seu ângulo, expectativas e ansiedade. Estávamos frente a algo inédito e viveríamos isso com todas as suas consequências.
O que era mesmo um Reality Show, ainda que participando dos preparativos que sucediam, eu só viria a sentir após a estréia, no dia em que desci as escadas que sempre percorria e atrás de um vidro havia gente.
Via sem ser vista.
Eu estava do outro lado do espelho do quarto das mulheres. As meninas secavam os cabelos frente um espelho onde viam a si próprias enquanto eu as observava a poucos centímetros do meu toque. Ali estava toda a distância que pode separar diferentes dimensões num mesmo universo. Era o retrato da desproporcionalidade de informações e conhecimento advindos do lugar em que cada um está numa estrutura. Eu tinha todas as informações de fora e elas nenhuma. Ocupávamos lugares intransponíveis, não cambiáveis, inexorável incomunicabilidade.
A impossibilidade do contato entre o interno e o externo é o que fazia aquele jogo. A distância entre o que se passava realmente no quarto das mulheres e o mundo imaginário que essa membrana entre os mundos faz emergir. Acho que me senti como um espírito, transparente entre os vivos.
A partir do momento em que o programa estréia, para ter contato com o mundo fora da Casa, para ter qualquer informação dos esportes, da família, da política, de qualquer coisa que não trate do mundo que se fecha ali dentro em torno dos EUS, o participante tem que ser eliminado da Casa pelo público ou pedir para sair, abandonando todas as promessas depositadas ali. Muitas vezes, expectativas sonhadas não só por ele mesmo, mas pela mãe, família, namorados, assessores, empresários, sua ínfima cidade no interior do Brasil…uma rede de pessoas que também acreditam ser aquela a única oportunidade de sucesso.
O momento de fama que promete dar sentido ao EU no mundo moderno.
A existência como imagem parece preencher momentaneamente a busca de uma experiência real, o reality como epifania de um mundo recortado pelo programa, prometendo mostrar exatamente do que se trata a experiência humana e falhando bombasticamente por ser capaz apenas de criar uma imagem. E é com isso que o participante de qualquer reality show tem que se haver. Porque tantas vezes não se reconhece naquilo que vê?
Na Casa dos Artistas 1 eu perguntava: Moradores, ruminava com meus botões, como se pode dormir num lugar assim? Depois também me perguntei, como poderiam menstruar? Anos depois vi pessoas pedirem para sair do reality por não conseguirem fazer cocô. Pressentia, naquela época, que transar não apresentaria esse tipo de problema, pois para alguns a ideia de sexo em exibição é muito atraente.
Na minha primeira visita à Casa voltei na van de cortininha tocada por um futuro. Encontrei uma daquelas extremamente jovens e modernas produtoras de TV já sentada no carro quando entrei. Chorava! Disse-me, estou encerrando minhas atividades de assistente de direção aqui e agora. Tive que pedir demissão porque meu corpo não aguentou o trabalho. Nascem manchas pelo meu corpo, não consigo dormir, imagino todas aquelas câmeras espiando minha vida, invadindo minha cama…na verdade, diz, é uma pena, a equipe é tão legal, o mercado em retração, mesmo assim, eu não dou conta….meus sonhos não me deixam seguir.
Entrou num carro onde a esperava uma mulher e nunca mais a vi.